O amor e as ausências de Morel

E se pudéssemos ser imortais? E se a nossa boca aprendesse a falar o amor de Bizet, sem percorrer as avenidas do desencontro? E se misturássemos sonho e realidade para que o mundo pudesse viver para sempre nessa camada cristalina, bem ao estilo da Nouvelle Vague de Godard? Adolfo Bioy Casares, ao escrever A Invenção de Morel, optou pelo enigma e não pela solução e há ecos borgianos espalhados por toda a parte. A história mostra-nos um homem condenado à prisão perpétua que, perante a sua situação deplorável, segue o conselho do italiano que vendia tapetes em Calcutá: “Para um perseguido, para si, não há senão um lugar no mundo, mas é um lugar onde se não vive. É uma ilha. Os brancos construíram, por volta de 1924, um museu, uma capela, uma piscina. As obras foram concluídas e abandonadas. (…) A ilha é o foco de uma doença ainda misteriosa, que mata de fora para dentro. Caem as unhas, o cabelo, a pele e os olhos secam, e o corpo vive oito, no máximo quinze dias”.

O perseguido foge e presume que a ilha pertence ao arquipélago das Ellice. À medida que a história avança compreendemos que Casares distorce os limites entre a realidade e a imaginação, atirando-nos primeiro para a nebulosidade da simulação, com dois sóis e duas luas, e depois para a tontura do simulacro. Confesso que este não é um livro que eu gostaria de ter lido agora. Enquanto estive na faculdade, alguns professores e amigos aconselhavam leituras diversas. Nesse território de descoberta, deambulei por Jean Baudrillard, Pierre Lévy e Gilles Deleuze, mas nunca ninguém me apontou o caminho para A Invenção de Morel. Recordo-me de ficar fascinada com esse universo onde as fronteiras nunca são exactas e, ainda que busque incessantemente pela verdade, como saber onde começa o real e termina o sonho? Se somos cada vez mais invadidos por conteúdo fantasma, como medir a nossa percepção da realidade? Adolfo Bioy Casares não responde a nenhuma destas questões, deixa-nos à solta com o protagonista e os seus pensamentos: “Percorri as estantes buscando ajuda para certas pesquisas que o processo interrompeu e que tentei retomar na solidão da ilha (creio que perdemos a imortalidade porque a resistência à morte não evoluiu; seus aperfeiçoamentos insistem na primeira ideia, rudimentar: manter vivo o corpo inteiro. Só se deveria buscar a conservação daquilo que interessa à consciência)”.

O fugitivo escreve, sob a forma de um diário íntimo, e mostra-nos que não é a dura rotina da busca dos meios de sobrevivência que o perturba, mas o sobressalto de vir a ser descoberto, temor que se aguça quando descobre a presença de outras pessoas, ocupando e animando as instalações outrora abandonadas. Dentro desse grupo encontra-se uma mulher de nome Faustine e de repente entra-se no campo das contradições, onde existe esse permanente desejo de aproximação e a necessidade de não se fazer notar: “A mulher, com a sua sensualidade de cigana e com o lenço colorido grande demais, parece-me ridícula. No entanto, sinto, talvez com um pouco de humor, que se pudesse ser olhado um instante por ela, falar com ela um instante, receberia ao mesmo tempo o socorro que o homem tem nos amigos, nas noivas e nos que são do seu próprio sangue”. O fugitivo não tem expectativas, mas esta mulher deu-lhe esperanças e criam-se realidades paralelas entre a mulher que é observada e não observa, e o homem que espia: “Então, para adiar o momento de lhe falar, des­cobri uma antiga lei psicológica. Convinha-me falar de um lugar alto, que me permitisse olhar de cima. Esta maior elevação material compensaria, em par­te, as minhas inferioridades”.

Mais tarde, as anotações encontradas pela personagem-narrador apontam-nos para outra direção e revelam-nos que aquelas pessoas não são pessoas, mas sim imagens que são projectadas continuamente por uma máquina. Os espectros remetem ao desejo de vencer os efeitos do tempo, mas falta algo nessas imagens e, embora pareça estar a dar demasiados pormenores sobre o enredo, não vou escrever sobre essa falta porque para mim A Invenção de Morel, mais do que uma história sobre invenções, é uma história sobre essa ausência. O objectivo de Casares era oferecer uma realidade perpétua, mas, no fim de contas, talvez só a arte e o amor nos podem salvar.

Reino (des)unido

Quando o nosso mundo fica demasiado exposto às palavras existe um coração que palpita por algo mais. Sobe a Maré Negra é um livro que extravasa para a vida como as lágrimas que o oceano derramou num corpo que nunca ficou pronto para as rugas. Francesca Stubbs, apesar de se sentir atraída pela morte heróica desde uma idade precoce, é a personagem que recorda a rapariga que sangrava para enganar essa pele que insiste em envelhecer. Porém, a sua existência começa a fazer parte de um mapa cheio de perdas, e se por um lado há quem pense que as emoções encolhem à medida que envelhecemos, por outro Fran parece estar em fuga perpétua, rejeita a inércia a que a velhice condena porque, tal como a sua amiga Josephine Drummond, quer morrer com luz. É preciso referir que a personagem central é divorciada, com dois filhos adultos e, embora já tenha ultrapassado a idade da reforma, continua a trabalhar e quer guiar o carro até o último momento.

Desde o princípio que percebemos que Fran é uma mulher de certezas firmes, mas o tempo derruba muitas dessas seguranças. Primeiro, compreendemos que a Inglaterra não tem chão para tanta chuva; depois o televisor mostra imagens da recente erupção oceânica ao largo de El Hierro; e mais tarde há a Nuvem Vermelha de Piet Mondrian e a poesia de Yves Bonnefoy que reconhece a finitude do homem através das ruínas e das suas memórias. Sabemos que a morte está próxima, e numa avalanche de inquietações, existe um farol que nos situa para essa maré (nem sempre negra): Sara escapou a ser velha, mas antes disso falou com Ghalia Namarome sobre o Muro da Vergonha; Cristopher (filho de Fran) perdeu a sua companheira Sara, mas está seduzido pelas Canárias; Poppet (filha de Fran) vive obcecada com a morte do planeta, mas recorda os tempos de meninice; Teresa Quinn está a morrer de mesotelioma, mas morre com tal empenho que Fran se sente fascinada. Todos os dias correspondem a céus diferentes e se existem nuvens que murcham a existência também há eufórbias que nos fazem erguer a cabeça e contemplar os mais simples prazeres da vida.

Mais do que um livro sobre a morte, Margaret Drabble escreve sobre a espera e um coração que pode falhar a qualquer momento. A velhice está em toda a parte e o Brexit também. Parte do livro passa-se na ilha de Lanzarote, mas a autora faz lembrar um Reino (des)unido e isolado como nenhuma outra ilha, por isso existe uma meia-luz que nos permite avançar e uma meia-sombra que nos faz duvidar. Envelhecer parece sempre ser um desastre e existem perguntas que nunca chegam a ser respondidas: “Nenhum deles pode saber até que ponto da história dos imigrantes está longe de acabar; na verdade, está apenas no princípio. Ao longo dos anos seguintes, serão menos os que arriscam a passagem do Norte de África para o Atlântico, mas serão multidões os que povoam, em barcos mal preparados, o Mediterrâneo Oriental à medida que a violência no Médio Oriente e na Líbia os empurra para um maior desespero. Apontarão para a Grécia, Malta, Sicília, Itália e milhares e milhares afogar-se-ão enquanto a Europa se fortifica, deixa de enviar missões de salvamento, deixa afundar-se os barcos à vista de terra. Quanto mais gente se afogar, espera a Europa, mais se desencorajará a emigração e menos serão as bocas para a Europa alimentar”. O mundo tem erguido muitos muros e as suas memórias traumáticas não dissipam com o tempo. Mais do que certezas, este é um livro sobre ruínas, mas é preciso seguir a luz.

Todos poderíamos ser Islândia

Imagina a melodia mais triste do mundo, chora-a numa casa de misérias infindáveis, depois enxuga as tuas lágrimas com independência e experimenta a liberdade para lá das terras em que gatinhaste. Sim é tão penoso quanto verdadeiro, e Gente Independente tem isso e muito mais, pois aqui “uma perda pequena pede a sua força emprestada a uma perda maior”.

Quem disse que os povos se separam por fronteiras terrestres? Existem linhas que nenhum geólogo adivinhou e os nórdicos são donos de uma magia que o resto do mundo ignorara durante um longo período de tempo. Quando cheguei à Islândia de Halldór Laxness fiquei com a sensação de que aquele lugar não poderia pertencer às coordenadas mundanas. Parte dele era feito de areia preta, a outra parte era camadas de liberdade que o tempo sedimentou em segredo, por isso confiei nas asas da mãe ganso porque, no fim de contas, “os pássaros são mais felizes do que os homens”. 

No mais jovem país do mundo (geologicamente falando), a natureza é selvagem e viva e talvez o caos tivesse de se soltar precisamente nessa beleza bravia, que dificilmente se deixa domesticar. Eles quebraram antes, eles protestaram antes, o governo caiu antes, o FMI foi chamado antes e hoje, 11 anos após a pior crise financeira da sua história, podemos perceber como as pessoas se organizaram para que o país adoptasse uma estratégia e, quando todos recomendavam que a Islândia fizesse zig, ela fez zag, recusando-se a pagar pela especulação dos bancos.

Neste momento, os islandeses perscrutam os sinais da sua história e acreditam que tudo tem um conserto, mas existe todo um outro concerto, onde o clima e o território ditam as regras. Não há dúvidas que a velha Islândia era um lugar difícil de se viver e, durante muito tempo, a “terra do gelo” deu aos seus cidadãos o que lhes bastava para subsistir. Com invernos rigorosos, pobreza extrema e vulcões despertos, o território tinha como fonte vital de alimentação as suas ovelhas. Por isso, penso que para entrar nas profundezas deste livro tem de se perceber primeiro que, mesmo parecendo frágil, a Islândia é dona de forças extraordinárias e, se o Inverno abre o seu olho boreal, o sol da meia-noite levanta as suas pálpebras para nos mostrar as cores que estão prestes a rebentar.

Pelo menos, assim nos fazem crer Guðbjartur Jónsson de Casas de Verão (a personagem dominante deste livro) e seus filhos. Logo nas primeiras páginas, damos conta de que Bjartur é um ser obstinado que luta todos os dias pela sua independência, mas parece não estar preparado para os tempos que se avizinham e são os seus filhos que pincelam a Islândia de renovadas esperanças: “Quando um homem olha para uma planta florescente que cresce esbelta e indefesa nos ermos entre centenas de milhares de pedras e que encontrou por mero acaso, questiona-se: Por que razão está a vida a tentar irromper?”.

Ásta Sóllilja (Ásta quer dizer “amor” e Sóllilja significa “lírio do sol”), apesar de estar confinada ao mundo restrito do pai, percebeu que, quando a luz do saber brilha, é-lhe permitido voar nas asas da poesia; Nonni (ou “pequeno Jón” como Bjartur lhe chama) deixa-se fascinar pelas palavras aladas da mãe e, como nasceu para descobrir os países mais distantes, sonha em cantar para o mundo inteiro; Gvendur sempre seguira o exemplo do pai, mas a dada altura acredita que “amadurecer e tornar-se adulto é ter descoberto a América”; já Helgi tem uma inclinação para o oculto e acha ter visto Kólumkilli (o lendário feiticeiro que, juntamente com Gunnvör, assombra a vida dos habitantes desta terra). E ainda que algumas pessoas julguem a importância dos países pelo espaço que cada um ocupa no mundo, Halldór Laxness mostra-nos que “em nenhum lugar há almas tão diferentes como numa quinta pequena”.

Mas nem sempre conseguimos estar próximos dos dias primaveris, por isso existe também a alma esquerda de Ásta que, sem o colo do pai, não consegue encontrar abrigo; um Nonni que diz que o amor é “a coisa mais terrível entre todas”, um Gvendur que perde a América por um deslumbramento; os ladrões do capitalismo que vêm contrariar o espírito antigo da nação de Bjartur, e, mesmo que o fantasma Kólumkilli não seja real, há quem faça questão de lembrar que a humanidade acredita no incrível e duvida do credível. 

Mas, afinal, quem cresce num campo aparentemente semeado de anátemas? Gente Independente é uma lição, que nos mostra a beleza que fica para lá de qualquer sonho desfeito. E se o Japão tem o kintsugi, a Islândia terá o  ‘þetta reddast’, que  significa “tudo vai dar certo”. Porém, a vida é implacável neste lugar e a lua deveria ensinar-nos a sonhar para lá do seu brilho estimulante para que, antes de nos cegarmos pelas superstições de Kólumkilli e Gunnvör, nos fosse dada a possibilidade de respirar a liberdade desse país, que permanece amante da juventude e da charneca.

Pedra e perda de Pedro

A primeira emoção que experimentei quando comecei a ler Pedro Páramo foi a de desamparo. Os olhos de que me servi para avistar as paisagens do livro não foram os meus olhos. Os dedos em que me apoiei para folhear as páginas não foram os meus dedos. A mente que usei para começar a dar asas às ilusões não foi a minha mente. Em vez disso, roubei-a ao México em que nunca estive e, a partir daí, atrevi-me a dançar com anca, boca, pescoço e todos os outros membros possíveis para desamarrar-me do meu próprio corpo. O tempo da canícula estava lá (no livro) e cá (na minha terra firme), mas Juan Rulfo falou-me num idioma que até aqui pensava ser impossível comunicar e, como numa primeira leitura não consegui entrar na sua realidade mágica, forcei-me a reler a história mais inquietante que já conheci. Desta vez, precavi-me e calcei os pés de trapezista. Tal era o salto, tal era o risco. Tal era o voo e a sua inevitável queda.

“Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo. Y yo le prometí que vendría a verlo en cuanto ella muriera”, assim começa Pedro Páramo de Juan Rulfo. De forma muito sucinta, podemos dizer que a história fala de um filho (Juan Preciado) que busca a identidade do seu pai (Pedro Páramo), mas à medida que a narrativa avança percebemos que tudo se desfaz: primeiro o ar quente deixa de ser ar e passa a puro calor; mais tarde, os seres que aparentavam estar vivos descobrem-se mortos; e, no fim, afundamos em terra de ninguém, pois a cidade que este filho procura não mais existe e, nessa dissolução de certezas, temos apenas acesso aos murmúrios dos fantasmas.

Para mim, uma das passagens mais marcantes está precisamente no início do livro: “Yo imaginaba ver aquello a través de los recuerdos de mi madre; de su nostalgia, entre retazos de suspiros. Siempre vivió ella suspirando por Comala, por el retorno; pero jamás volvió. Ahora yo vengo en su lugar. Traigo los ojos con que ella miró estas cosas, porque me dio sus ojos para ver: «Hay allí, pasando el puerto de Los Colimotes, la vista muy hermosa de una llanura verde, algo amarilla por el maíz maduro. Desde ese lugar se ve Comala, blanqueando la tierra, iluminándola durante la noche». Y su voz era secreta, casi apagada, como si hablara consigo misma… Mi madre”.

Juan Rulfo não nos aprisiona em verdades feitas, nem sequer nos dá a conhecer o chão psicológico das personagens; em vez disso fotografa e revela paisagens para mais tarde no-las tirar e, ao seguirmos os defuntos que vagam sem rumo, somos sacudidos por mais e mais dúvidas. A poesia é caseira, mas o silêncio letal; a lua é meia, mas a terra continua estéril depois da desgraça a que Pedro Páramo a votou, e embora o caminho que falta percorrer pareça sempre ser o caminho da esperança, quanta dessa esperança resta num lugar que há muito se sente sujo por uma vergonha sem cura? Há México e há a sua Revolução, mas aqui as palavras são como uma grande Pedra – enxutas, pesadas e inamovíveis.

Ainda assim, é importante reter que sem as pedras de Pedro não haveria as solidões de Gabriel García Marquez. Juan Rulfo inspirou inúmeras possibilidades criativas e, ao perturbar o status quo, evocou uma realidade que em tudo contraria a tradição literária realista eurocêntrica. Sinto-me ainda a gatinhar quando penso nas planícies deste livro. Sinto-me como se não houvesse nenhuma rocha suficientemente sólida quando escrevo sobre o que esta obra poderá ser ou não ser. Um aviso eu posso deixar: se querem certezas não procurem por Pedro Páramo, mas se conseguirem caminhar com uma pedra no sapato e aceitar o absurdo da vida então penso que estarão prontos para avançar para aquela que Jorge Luis Borges considera “uma das melhores novelas das literaturas hispânicas e provavelmente da literatura mundial”.

O choro gigante da terra pequena

Primeiro vem o pai com o poder das palavras, depois a mãe com o pano da louça, mais tarde chegam os dias de luto, um talhante que chora, os castigos e uma criança de onze anos que acredita que tem um Gabriel para o consolar e um Tarzan para lhe dar força. 

Nesta vila tudo é pequeno. Tudo, menos as lágrimas e essa “Arte de Chorar em Coro”. Aquilo que o pai faz de melhor são os elogios fúnebres e, nessa capacidade de chegar ao coração dos vivos através dos mortos, o filho antevê dias de esperança porque “quando o pai faz um discurso fúnebre, as pessoas tratam-no bem, e quando as pessoas o tratam bem, ele trata-nos bem”. Deslumbrado, o miúdo de onze anos cresce com a noção de que a mãe não só não nasceu com essa vocação como nem sequer se interessa pelo poder das palavras, em vez disso traz amparo com as suas mãos esguias. Até aqui, tudo parece mais ou menos calmo, mas nesta história cedo percebemos que a melancolia sofre uma matemática complicada porque se há aqueles que são “missionistas” e choram porque já perceberam “a gravidade da vida” também há os que não o são e aí as palavras do pai não têm impacto algum, por isso a família tem de estar sempre a fazer contas. 

Como sustento, os pais têm uma pequena mercearia, mas o negócio nem sempre vai de vento em popa e se ninguém morrer a paz fica logo descoroçoada. Nesses altos e baixos, notamos que a anormalidade de uns é a normalidade de outros, e se, pelo meio, nos meterem bichos na cabeça podemos sempre contar com a criança que nos mostra que até nos lugares mais improváveis existe espaço para a ternura. Mas quando Asger (o filho mais velho que estuda em Sønderborg para ser arquitecto) visita a família somos confrontados com o facto de o pai gostar de dormir com a filha no sofá vermelho e, aí, todas as emoções ficam à flor da pele: se por um lado temos o tremor do pai, por outro encontramos a passividade da mãe, a fúria de Asger, o deslocamento de Sanne e a solidão da criança de onze anos, que só conta com ele próprio para resolver os problemas do “lar”.

Mas, felizmente, Asger é sábio: “Compra uns coelhos – diz, por fim. – Sentir-te-ás melhor, comigo funcionou. Pode-se confiar nos coelhos, arranja bastantes”. Encorajado com o conselho, o menino pede dinheiro à mãe e, a partir daí, os seus dias nunca mais serão solitários. Ainda assim, a Bíblia ensina “não matarás (…) ou vais parar ao inferno”, só que alturas há em que faz falta um bom funeral e por bom funeral entenda-se aquele que é “solene, opressivo e histérico”. Estamos numa terra (como já referi) onde tudo é pequeno, mas quando a vida expande avistamos Sønderborg e aí “a coisa mais natural do mundo é, repentinamente, que haja luz em todo o lado, e estranho seria que a apagassem subitamente. Alguém como eu diria então: era o que eu temia, não podia durar muito. Mas isso é porque sou da aldeia; Sønderborg já é grande há muito tempo”.

Nesta e em muitas outras passagens encontramos um Erling Jepsen sagaz, e embora estejamos perante uma história de muitos choros, o autor faz-nos curvar da lágrima ao riso e do riso à lágrima, sem que necessariamente tenhamos de remover ou ampliar estados de espírito. Forte, por ultrapassar os limites do coração prudente é, no fundo, uma história que transborda. Mas, afinal, quantas lágrimas poderão correr numa terra pequena? E quantas dessas lágrimas serão legítimas?